terça-feira, 10 de maio de 2011

O pó dos dias (e o que eu gostaria de ter escrito, isto!)


"A vida levanta pó que se farta. É o trabalho, os amigos, os amores insatisfeitos, a rotina que nos engole. São as crianças e o casamento, os pais e os irmãos, os sonhos (e as acrobacias com que nos iludimos), e mais até. Fica no ar, cola-se a nós, respiramo-lo com parcimónia, e entranha-se (bem fundo) como uma sereia que encanta e nos adormece de sossego.
O pó dos dias não nos irrita as mucosas: inflama o nosso olhar e aloja-se, como um vírus que aí encontra um hospedeiro, no modo como deixamos de escutar com o coração e nos contentamos em ouvir. Resignadamente, em ouvir. Mesmo que, para fugirmos dele, como uma melga que se insinua nos ouvidos, levantemos mais pó, e mais pó, evitando que ele assente, devagar, e nos puxe - enfim - para pensar.
O pó dos dias leva a que  imaginemos que a vida corre por si. Sem que precise de um mestre de costa ou de um homem ao leme. Conduz-nos para veredas íngremes e para couraças escorregadias. Faz das pessoas vultos, e parece tornar opaco o nosso querer. Ah!, e obriga-nos a lamentar, quase sempre, o quanto desejávamos transformar o pó dos nossos dias numa manhã de sol. Se pudéssemos...é claro.
Nem sempre querer é poder. Muitas vezes, quer-se e não se pode. A diferença está entre querer...e acreditar que se pode.
Sempre que acreditamos, os milagres acontecem. E aquilo que falta a quem quer (e não pode) é um "vai, que eu olho por ti". Alguém que, algures na nossa vida, nos tenha dado a suprema bondade de acreditar naquilo em que acreditamos, e de querer o que nós queremos, que transforma o querer em poder.
Em verdade, o truque esconde-se neste pequeno pormenor: quando se quer, ninguém consegue ir - mesmo que vá pelos seus sonhos - contra todos os que, afirmando que gostam de nós, jamais nos dizem: "vai, que eu serei a tua âncora." Ou: "vai, que eu olho por ti". (Por vezes, dizem mesmo, embrulhado num silêncio cobarde: "se fores, deixo de olhar para ti").
Todos nós precisamos duma âncora para que os milagres aconteçam e, assim, se vença o pó dos dias. e talvez seja isso que a vida tem de mais desconcertante: não são os ventos nem as marés, só as âncoras...nos permitem navegar."

"Chega-te a mim e deixa-te estar", Eduardo Sá


Nota: o negrito é de minha autoria.


4 comentários:

  1. Texto maravilhoso, revelador de uma tão grande verdade. A visão de uma âncora como factor libertador, muito para além do seu objectivo de mera retenção.
    Fiquei curiosa pela escrita de Eduardo Sá.
    Bjs

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  2. Coisas de Feltro: o Eduardo Sá, fala de coisas sérias, de uma forma tão simples e deliciosa que me faz sempre sorrir. Ás vezes, parece que me mostra aquilo que sempre esteve ali, mas que eu não conseguia ver...e faz-me pensar. Adoro quando um autor me faz pensar... e estou "apaixonada" pela sua escrita.
    Lê, vais gostar :)
    Bjs

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  3. Fabuloso texto, conheco o autor mas não esta escrita maravilhosamente envolvente.
    Obrigada pela partilha

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