"Miga Mágica e os Marlboros Maravilhosos
Miga acordou logo pela manhã, quer dizer, tanto podia ser de manhã como de noite, mas a verdade é que pôs o despertador para as sete porque se não pusesse nunca chegaria ao trabalho a tempo, por isso foi logo pela manhã.
Miga acordou logo pela manhã, quer dizer, tanto podia ser de manhã como de noite, mas a verdade é que pôs o despertador para as sete porque se não pusesse nunca chegaria ao trabalho a tempo, por isso foi logo pela manhã.
O barulho da passarada da sua rua, uma daquelas ruas com nomes de cidades em África que só quem lá viveu é que sabe onde eram, invadia o seu quarto juntamente com a sirene do camião do lixo. Miga deu por si a pensar que quando o camião do lixo vinha depois da meia noite, o barulho incomodava-a e ela tinha que voltar a ligar a televisão para ver o “Die Hard With a Vengeance”, mais uma vez e pensar que quem devia ter ganho era o Simon Gruber. Mas agora que o camião do lixo vinha de manhã, isso também não a satisfazia, afinal de contas ela queria fingir que estava a ouvir as notícias na televisão e aquela sirene misturada com os pássaros incomodava-a.
À medida que lavava o seu cabelo banal com um champô de supermercado pensava no dia que se avizinhava como caixa num hiper, ainda que não fosse uma função para lá de estimulante, Miga sentia-se a fazer parte do quotidiano das pessoas cujos produtos deslizavam pela borracha mal lavada da caixa, pequenos segredos que faziam blip ao serem reconhecidos pelo leitor e passavam a ser do freguês, porque é que uns comiam Oreos normais e outros eram lambões e compravam das que eram cobertas com chocolate de leite? É que entupir artérias por entupir artérias, o recheio das Oreos já era Crisco com aroma a baunilha e açúcar, não precisava necessariamente de um empurrão. Mas Miga fazia parte de uma pequena elite que sabia o que era Crisco e embora ela tentasse recrutar mais e mais pessoas e quisesse destruir aquele conhecimento estupidamente hermético, ninguém queria saber e além disso, ela odiava as embalagens das Oreos cobertas com chocolate, nunca passavam no leitor e ela tinha que introduzir o código à mão numa maratona digital em que o freguês começava a bufar ligeiramente como se a culpa fosse dela, como se ela quisesse ter que esforçar a vista para introduzir aquela sequência em que invariavelmente se iria enganar.
O som do secador abafou o barulho que vinha da televisão que estava ligada no quarto e ela deu por si à mesa da avó no lar decrépito onde tinha acabado os seus dias, cujos dedos trémulos seguravam um Marlboro Lights mas que ao inalado lhe dava todo um brilho especial ao seu olhar, era como o portal de tempos de outrora, antes do pai de Miga ter derretido a fortuna da família no Bingo do Sporting.
“Ai Miga… vai fazer qualquer coisa a esse cabelo.”, dizia a matriarca ignorada depois de deitar o fumo cá para fora, “Podes estar na penúria mas não ser simplória. No meu tempo era impensável sermos vistas assim!”
“No teu tempo não havia tampões com aplicador…”, respondeu Miga até se aperceber do que tinha dito. A matriarca semicerrou os olhos como uma áspide prestes a atacar, ou pelo menos da forma como nós achamos que elas semicerram os olhos antes de atacar e perguntou “O quê é que disseste?”, Miga aproveitou a deixa e corrigiu “Mal tenho tempo para usar o secador!” e a senhora deu um suspiro de alívio, mas Miga nunca sabia se os lapsos eram entendidos ou não.
“Não devia fumar…” disse enquanto tentava agarrar a mão livre da avó numa tentativa de um gesto de carinho, a senhora percebeu e afastou a mão, “Porquê? Ainda me vão matar? Olha, menos uma despesa, ou achas que a vida ainda me aguarda muitas surpresas depois de dez anos aqui dia-após-dia? Tu continuas solteira e deves ficar assim, mas com esse cabelo não admira! E por um lado ainda melhor, eu já mal tive paciência para dois netos, quanto mais aturar os bisnetos vestidos em roupas pirosas enfiados naquelas coisas que parecem ovos , no meu tempo pagava-se a pessoas para nos criarem os filhos.”
“Mas os cigarros só lhe fazem é mal!”, ela reforçou genuinamente preocupada com a mulher enrugada, de baton cor de laranja e muito blush e cujo cabelo amarelo da nicotina tinha alguns vestígios de cinza que flutuavam no ar, libertos pelo tremelicar constante, ela tossiu, voltou a tossir, limpou a boca com um lenço de papel já manchado de laranja, “Já te disse, não estou particularmente preocupada em viver muito mais e estes… são o único luxo a que me posso dar, lembram-me noites de canasta e pequenos cálices de Porto com as minhas amigas a falarmos da vida de alguém que não estava presente.” e ouvindo isto, Miga desistiu pela enésima vez de convencer a avó que fumar lhe fazia mal. Afinal de contas, esta era a mulher que só comia bróculos se os talos tivessem sido tirados minuciosamente.
“Para ti isto é um veneno, mas para mim estes Marlboros são maravilhosos. Além disso são Light, fazem menos mal.”
Miga ainda tentou relembrá-la que agora eram Gold e não Light, mas desistiu antes de começar e com isto regressou à pastelaria do centro comercial “É um Compal de pêra e um pastel de nata.” disse ao senhor por trás do balcão e teve que o gritar porque o barulho da conversa ao redor aliado à máquina do café fazia com que o bis do pedido fosse um ritual. E durante um segundo, ela olhou para a máquina dos cigarros e viu os Marlboros.
Já na caixa, aproximou-se a primeira freguesa, Miga sorriu e perguntou “Tem cartão de cliente?”, a senhora respondeu com um ar distante “Quantos menos as pessoas sabem, mais elas teimam que sabem.”, Miga ficou confusa, então a freguesa agora respondia-lhe com frases do Osho?!?, ela pigarreou e repetiu “Não percebeu, quero só saber se tem cartão de cliente?” e a cliente sorriu ainda que com o mesmo ar distante “A vida é uma piada cósmica…”, face à segunda citação do Osho, Miga encolheu os ombros e começou a passar os produtos pelo leitor e ao ver o creme depilatório de marca branca sorriu “Ah, vais ficar com os pelos nas virilhas encravados, depois quero ver se continuas a citar Osho ou se passas para a Alexandra Solnado.”, a mulher cheirava a uma mistura de neroli com flor de laranjeira e quando tirava as coisas da mala para encontrar a carteira, tirou um maço de Marlboro e Miga ficou estupefacta, os cigarros perseguiam-na.
À hora do almoço, enquanto o Anacleto do talho aquecia um guisado que perfumou a copa inteira deu por ela a ponderar se conseguiria almoçar sem respirar para não ficar atordoada com o cheiro a comida requentada, não é que ela não gostasse de guisado, mas naquele instante a copa cheirava a peixe frito, arroz de tomate, guisado, lulas recheadas, bacalhau com natas e bifinhos com natas. Ela comia sopa de legumas mas estava fria, na sua cabeça se a tivesse aquecido no mesmo microondas, era como se tivesse macerado todos os outros alimentos no dela.
Anacleto sentou-se ao pé dela e começou o diálogo nervoso do costume, a crise, reality shows, será que o primeiro ministro usa laca e depois perguntou-lhe: “Queres jantar um dia destes?”, ela sorriu e respondeu “Costumo jantar todos os dias, não é uma questão de querer, é um hábito. Mas, sim, porque não!” enquanto ele amassava um maço de Marlboro nas mãos e foi então que Miga visualizou tudo, o vestido que mais parecia um suspiro, a família do Anacleto, os miúdos estrábicos como ele e olhou e disse “Porque não…”, correu para o balneário, trocou de roupa e saiu porta fora sem dizer ai nem ui.
Passou na tabacaria, comprou um maço de Marlboro e meteu-se num cabeleireiro, quando saiu, de cabelo loiro e triunfante, acendeu um cigarro, engasgou-se e deixou-o cair. Acendeu outro, inalou, travou, exalou e disse para si mesma, “Tinhas razão avó… sempre tiveste razão…”
Anos depois, Miga casou com um cromo financeiro, não era giro, tinha uma conversa de seca, o sexo parecia misturado com dois comprimidos de Tramal Retard e havia dias que lhe apetecia dar um tiro na cabeça, mas naquele dia quando o viu a fixá-la à medida que ela deslizava pelo varão, ela soube que era o homem com quem ela iria casar, mas isso… é uma história para outra altura. E tudo isto graças a um maço de Marlboros Maravilhosos."
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